Direito penal do estado de ditadura

Aus Krimpedia – das Kriminologie-Wiki
Zur Navigation springen Zur Suche springen

Eine Rede von Prof. Dr. Maurício Dieter aus dem Jahre 2014 über Parallelen zwischen dem Strafrecht der Militärdiktatur und dem Strafrecht des Gegenwartsstaats in Brasilien:

1 O Sistema Criminal da Ditadura Brasileira e a Ditadura do Sistema de Justiça Criminal Brasileiro Prof. Dr. Maurício Stegemann Dieter Professor de Criminologia da Faculdade de Direito da USP 1. Introdução: um eterno 1º de Abril No dia 1º de abril, com a cumplicidade tácita ou explícita dos setores sociais mais conservadores ou amedrontados e forte expectativa de grandes corporações transnacionais, a polícia militar e tropas do exército fortemente armadas deslocaram-se a pé ou sobre veículos blindados para cumprir inúmeras ordens de prisão e assegurar lugares estratégicos para instauração de uma nova ordem. Apesar da óbvia antijuridicidade da mobilização militar – por ausência do decreto de Estado de Sítio pelo Congresso Nacional, como exige a Constituição – poucos juristas objetaram pública e enfaticamente seu repúdio à ação militarizada. E mesmo entre os que torceram o nariz, muitos souberam digerir o fato como medida necessária para lidar com o suposto perigo social que justificaria a extrema medida. Não faltaram, por outro lado, os menos ingênuos, previamente mobilizados à legalização do triste episódio sob o manto de uma oportunista retórica jurídica. Entretanto, menos de um ano após a consumação da ocupação militar, não faltavam arrependidos diante das repetidas notícias de prisões arbitrárias, torturas, execuções sumárias e desaparecimentos. O relato que acabo de ler, contudo, não tem por referente ao golpe militar que há cinquenta anos instalou a mais cruel ditadura da história brasileira. Refere-se, na verdade, à invasão do complexo de favelas do morro do Alemão no Rio de Janeiro para instalação da segunda Unidade de Polícia Pacificadora, executada em pleno regime democrático e durante o terceiro mandato do Partido dos Trabalhadores à frente do governo federal. Um dos grandes apelos do estudo da história é a descoberta de irônicas coincidências. Mas que exatamente meia década depois e no mesmíssimo “dia da mentira” os militares tenham saído dos quartéis para tomar o espaço público brasileiro é um daqueles casos em que a lembrança do “18 Brumário” é inevitável; aqui a história 2 verdadeiramente aconteceu “duas vezes” – a primeira como tragédia, a segunda como farsa. O objetivo deste ensaio é avaliar, após a trágica experiência do mais recente episódio ditatorial brasileiro, se há motivos para comemorar a redemocratrização formal-representativa brasileira à luz da dinâmica dos processos de criminalização desde a Constituição da República até os dias atuais. Para tanto, usará como critério uma comparação entre as mais odiosas práticas punitivas da Ditadura Brasileira e os processos de criminalização do tempo presente. Nesse sentido, já que a abordagem político-criminal do tema indica desde o início o caminho preferencial da heurística dialética, na qual paradoxalmente cada repetição histórica é determinada por suas irrepetíveis particularidades, começo a analisar a tragédia para, depois, avançar sobre a farsa, ou seja, primeiro vou detalhar algumas práticas punitivas próprias da Ditadura brasileira para, em seguida, reavaliar a permanência dessas práticas no Brasil contemporâneo. Vamos ao trágico. 2. A tragédia da violência ditatorial Entre 31 de março e 2 de abril de 1964 o governo democraticamente eleito de João Goulart – vice do presidente Jânio Quadros que espontaneamente renunciou ao mandato – foi derrubado por um golpe militar que submeteu o povo brasileiro a uma ditadura civil-militar que durou 21 anos e que deixou como legado a pusilânime dificuldade de redemocratização para as gerações futuras. O golpe, que hoje sabemos ter sido em parte organizado e financiado com o entusiasmado governo dos Estados Unidos, instalou uma nova ordem social, de natureza profundamente conservadora, fundada na opressão política da classe trabalhadora, na depressão do sonho de emancipação e reformas estruturais e na repressão de dissidentes, em todas as áreas. Contra a odiosa subversão do regime democrático, corajosos patriotas se lançaram ao “combate nas trevas”, isto é, à resistência armada, fundando diversas frentes de luta, especialmente entre as divergências do Partido Comunista Brasileiro. Entre eles, além das eminentes figuras de Lamarca e Marighella, figurou nossa atual presidente da República, recém reeleita. O esforço desses companheiros sinaliza o 3 conceito de heroísmo em sua concepção clássica, desde a Antígona de Sófocles: mártir é aquele que está disposto a morrer por sua causa. Contudo, apesar da abnegada dedicação desses combatentes, a maioria da classe estudantil, a resistência foi incapaz de seguir o exemplo cubano que inspirava a guerrilha da época. Para piorar, e ao custo da perda de centenas de preciosas vidas, em pouco tempo a resistência colaborou para justificar o aumento no uso da violência pelo ilegítimo Estado brasileiro, que por suas próprias contradições acabou se liquidando na primeira metade da década de 80. Em resposta, a sociedade brasileira simbolicamente reunida em Assembleia Constituinte, definiu o novo marco legal da justiça criminal para reinstituir os direitos e as garantias perdidas durante os chamados “anos de chumbo”. Mas quais os discursos e práticas que, exatamente, descrevem os tais “anos de chumbo”? De acordo com o Professor Nilo Batista, e à semelhança dos principais estudiosos sobre a história das programações criminalizantes no Brasil, a Ditadura brasileira não operou mudanças significativas na dimensão formal do Direito Penal brasileiro. Na verdade, ao menos no plano oficial, seu maior esforço foi negativo, isto é, o de impedir que o ligeiramente mais democrático e tecnicamente mais refinado Código Penal de 1969 ultrapassasse o plano da eficácia. Apesar do peso intelectual da Nelson Hungria, que apresentou o projeto em 1963 – ou seja, antes do golpe e no clima político da iminência das “reformas de base” – os Ministros de Estado da Marinha de Guerra, do Exército e da Aeronáutica Militar não se mobilizaram para substituir o útil Código de 1940, e após sucessivas prorrogações, o projeto foi finalmente enterrado em 1977. Em síntese, o Brasil permaneceu – e permanece, mutatis mutandis, até hoje – com o mesmo Código Penal do Estado Novo de Getúlio Vargas e que, à semelhança do Código de Processo Penal também vigente, é inteiramente inspirado nos projetos do então Ministro da Justiça (?) de Benito Mussolini, Alfredo Rocco, figura profundamente admirada por Francisco Campos que, não contente em legar ao Direito nacional três elogios ao fascismo – além os Códigos de Direito e Processo Penal, a Constituição “Polaca” de 1937 – ainda ajudou na redação do primeiro Ato Institucional dos golpistas, depois conhecido como “AI-1”. Logo, sem alterações substanciais na própria legislação, seria melhor descrevê-la, portanto, como convivência entre um sistema punitivo superficial, formalmente 4 válido e aplicável à maioria das pessoas, e um sistema penal subterrâneo, voltado para a repressão violenta de inimigos políticos do autoritarismo. Somente contra eles, os novos inimigos da ordem social ditatorial, aliás, é que foi desenvolvida uma pequena legislação específica, que radicalizou a chamada doutrina de segurança nacional que importamos da política ianque. É o caso do decreto-lei 314 de 13 de maio de 1967, cujo rigor seria exacerbado pelo decreto-lei 510, de 20 de março de 1969, que entre outras coisas determinava punição de atos preparatórios contra a ordem pública. Por fim, o decreto-lei 898 de 29 de setembro de 1969, cominava pena de prisão perpétua e de morte para os subversivos associados a “atos terroristas”, lei que só foi revogada no final de 1978 (pela lei 6.620). Outras leis parecidas trataram da expulsão de estrangeiros que colaboravam com a resistência armada e o controle de aeronaves para trânsito dessas pessoas ou de armas. Como se vê, o sistema punitivo brasileiro da Ditadura é mais conhecido pela criminalização secundária do que primária. Não por outro motivo, a verdadeira natureza do sistema criminal brasileiro durante a Ditadura só pode ser desvelada pelo relato daqueles que sobreviveram à violenta perseguição por suas convicções políticas. A vítimas, em questão, foram principalmente atingidas pela união de repartições policiais civis e militares que caracterizava o subsistema DOPS/DOI-CODI, centro de tortura, mate e ocultação de cadáver de centenas de pessoas que optaram pela “crítica das armas” principalmente durante o período que compreende os anos de 1968 e 1974. Os novos destacamentos da repressão aproveitam a experiência dos “esquadrões da morte” organizados pela polícia brasileira a partir da década de 50 no Brasil, voltados à execução sumária de mendigos e suspeitos pobres, normalmente acusados de crimes patrimoniais. Apesar da elevada instrução que os quadros militares teriam na Escola Superior de Guerra e na Escola das Américas, as lideranças responsáveis pela “caça aos comunistas” aproveitaram essencialmente as práticas de tortura utilizadas foram aprendidas nas Delegacias de Polícia Civil dos estados, onde ontem e hoje a tortura é método preferencial de investigação. Vemos, assim, três grandes instrumentos de repressão na ditadura: a humilhação pública, a prisão arbitrária, seguida da tortura (como punição antecipada ou instrumento inquisitório), além de execuções sumárias (homicídios não justificados e 5 anteriores ao início de processo penal oficial) e desaparecimento de corpos para evitar instrução processual. Já no plano oficial, temos a antecipação da punibilidade de atos preparatórios, o encarceramento como neutralização de pessoas supostamente “perigosas”, a restrição de direitos processuais (como o “Habeas Corpus”) e a definição de competência militar para julgar civis. Após esse brevíssimo diagnóstico, a próxima etapa, portanto, é tentar identificar a permanência dessas práticas no sistema de justiça criminal brasileiro contemporâneo. 3. A sobrecriminalização do cotidiano Com a redemocratização e a Constituição de 1988, esperava-se que o sistema penal brasileiro finalmente alcançaria um estágio civilizatório adequado. Foi exatamente o contrário do que aconteceu, como podemos ver em seus mais diferentes aspectos, a começar pela criminalização primária. Para começo de conversa, basta nada mais lembrar que os dois principais “monumentos” da Política Criminal brasileira – o Código Penal e o Código de Processo Penal – continuam a ser em essência os mesmos documentos que tão bem serviram à ditadura do Estado Novo e à ditadura civil-militar de 64. Ora, que esses dois “Decretos-Leis” continuem a disciplinar a imputação de responsabilidade penal no Brasil – apesar das poucas e superficiais mudanças que sofreram de 1984 até os dias atuais – é um evidente e importante sintoma de que o autoritarismo ainda é a base ideológica do sistema de justiça criminal brasileiro. Mas o problema é ainda maior, porque a criminalização primária no Brasil piorou, e piorou muito, da Constituição da República de 1988 em diante. Senão, vejamos. Em verdade, do final da década de 80 em diante, as leis penais brasileiras aumentaram exponencialmente. De fato, saindo de aproximadamente 450 crimes, temos hoje no Brasil cerca de 1684 tipos legais incriminatórios, conforme cálculo aproximado do Ministério da Justiça em parceria com a Fundação Getúlio Vargas. Esse processo de sobrecriminalização primária, de construção absolutamente desregrada de crimes, foi especialmente acentuado durante a segunda metade da década de 90, durante os mandatos de Fernando Henrique Cardoso. Esse também é o período em que assistimos à indevida aproximação entre o direito administrativo e o 6 direito penal, que perde qualquer referente em relação ao bem jurídico para criminalizar a violação de “complexos funcionais” do Estado sem qualquer lesividade a direitos fundamentais alheios, tais como o “sistema financeiro”, “sistema ambiental”, “sistema de saúde pública”. O que quero apontar aqui é que, se por um lado a Ditadura brasileira dispunha de um poder etéreo de criminalização por qualquer motivo, o Estado brasileiro dispõe hoje do mesmo poder de criminalização por qualquer motivo, mas agora porque “qualquer motivo” está previsto na legislação penal brasileira. A quantidade de crimes e contravenções existentes é de tal ordem que é virtualmente impossível não enquadrar um cidadão em uma figura típica qualquer, escolhida após a detenção e não dela determinante. Com isso, opera-se um progressivo deslocamento da antijuridicidade material – o consenso social de que um fato é “grave” e autoriza o poder de polícia – da antijuridicidade formal – a simples definição daquele fato em crime. Nesse sentido, além de crimes absolutamente risíveis – como o “dano a planta ornamental” e o “molestamento de cetáceos” – temos também uma notável quantidade de leis penais “em branco” – lei de drogas, contra o sistema financeiro etc. – cujo conteúdo incriminatório está inteiramente à disposição do Executivo Federal, seus órgãos e agências, excluindo a possibilidade de decisão democrática sobre o que pode ou não pode ser criminalizado. Também é sintoma dessa sobrecriminalização primária a incriminação de meros atos preparatórios em crimes de perigo abstrato – “quadrilha ou bando”, “associação para o tráfico etc.”. A intervenção antecipada do Direito Penal, antes mesmo que o indivíduo opte por passar do plano à ação, com o início da execução, é uma característica óbvia de Estados autoritários, incompatível com o regime democrático. Contraditoriamente, contudo, esse é o atual sentido da programação criminalizante do sistema de justiça criminal brasileiro na atualidade. Lamentavelmente, a arbitrariedade do poder em criminalizar é, hoje, tão evidente quanto era em 1964. 4. O Direito Penal do Ato (do Cidadão) e o Direito Penal do Autor (do Inimigo) 7 No plano ético-normativo, o Direito penal do Ato, ou Direito Penal do Fato, é o modelo de imputação de responsabilidade penal afim ao Estado Democrático de Direito, porque realizador do princípio da culpabilidade que, entre outras atribuições, estabelece que o indivíduo deve ser punido por aquilo que fez ou por quem ele é, como se explica a seguir. Por um lado, o Direito Penal do Fato prevê que o objeto da reprovação é o tipo legal não justificado, o qual pode ser censurado a um indivíduo que reúna os critérios mínimos para decidir ou não por sua realização, consoante a estrutura de imputação definida pela dogmática penal, sendo assim a própria expressão do princípio da culpabilidade como garantia e limite democrático contra a competência punitiva do Estado, que ao tratar todos de forma igual perante a lei exclui diferenças individuais para fundamentar ou agravar penas. Por outro lado, para o Direito Penal do Autor o delito é visto como sintoma de um defeito individual, sendo indício de um desvalor vinculado a uma característica pessoal; dissociado, portanto, da ação, o crime não só é resultado do comportamento de indivíduos etiologicamente distintos mas precisamente o que permite descobri-los, ocultos que estão no meio social. Logo, é possível separar o desvalor de ação e resultado da avaliação sobre a necessidade e utilidade da pena, porque seu objeto não é o tipo de injusto, mas a própria existência de sujeitos inferiores na dimensão moral ou biopsicofísica, ou seja, criminosos por vocação, convicção ou natureza. Para fins de crítica, não há maneira melhor de ilustrar o significado concreto do Direito Penal do Autor do que remeter ao regime jurídico-penal durante o governo do Partido Nacional Socialista dos Trabalhadores Alemães. Pois como esclarece a extraordinária revisão do trabalho intelectual de Edmund MEZGER à evidência de seu compromisso ideológico, um dos traços distintivos do Direito Penal nazista foi exatamente o de permitir a execução de medidas pós-delituais – isto é, um sofrimento independente da culpabilidade, além da pena aplicada – aos sujeitos identificados como perigosos, o que inicialmente aconteceu por meio da Lei do Delinquente Perigoso Habitual aprovada em novembro de 1933 e introduzida no Código Penal alemão no ano seguinte, responsável por autorizar custódia de segurança (“Sicherungsverwahrung”) de duração indeterminada ou mesmo a morte de reincidentes, bem como esterilização e castração de delinquentes sexuais. Tudo feito, é claro, em nome da tão popular 8 segurança pública, abraçada na Academia pela teoria que tornava a condução da vida – e não o tipo de injusto – o fiel da balança no juízo de censura. Registros históricos revelam que, sob este diploma legislativo, mais de 17.000 (dezessete mil) pessoas foram conduzidas a campos de concentração entre 1934 e 1944, nenhuma das quais saiu viva. Esta foi, porém, somente a ponta do iceberg: à medida que o regime se consolidou, a dicotomia amigo-inimigo – tão cara ao Estado nacional-socialista – também serviu de fonte para buscar a legitimação formal da Solução Final (“Endlösung”) dos estranhos à comunidade (“Gemeinschaftsfremde”), como foram rotulados os delinquentes habituais, mendigos, fracassados, alcoólatras e indivíduos com vida sexual imoral (michês, prostitutas, homossexuais etc.), entre outras ralés no Projeto de Lei que é a mais acabada tradução do Direito Penal do Autor. A pretensão desta iniciativa legislativa era a homologação normativa do poder punitivo subterrâneo em uma Política Criminal afim ao higienismo já em prática – e que se servia dos avanços na estatística e da melhor tecnologia à disposição – para, primeiro, identificar os inimigos internos que, embora arianos, eram socialmente indesejáveis e prejudiciais à comunidade do povo alemão, seja por falhas psíquicas, físicas ou ideológicas e, em seguida, eliminar estas pessoas desajustadas e inaptas (“Taugenichtse”) ou de menor valor pelos canais oficiais, cuja gestão cabia à autoridade administrativa, sem interferência do Judiciário, tal como convém ao Estado de Polícia. Por certo, dentre o grupo de antissociais mencionados os delinquentes habituais – por tendência (“Hangverbrecher”), profissionais ou, pior, de estado – constituíam um subgrupo especialmente perigoso, clientes preferenciais dos excessos extra-penais da inocuização, primeiro mediante vigilância, depois detenção e, por fim, extermínio. Tudo isso independentemente da prática de um (novo) delito, instituindo-se no centro do arquipélago punitivo uma híbrida pena de segurança (“Sicherungsstrafe”), que não sendo pena ou medida de segurança em sentido estrito fugia aos limites das garantias judiciais, orientando-se por mera conveniência política. Evidentemente, expressos como modelos ideais e apesar dos esforços dos nazistas, nem o Direito Penal do Fato nem do Autor existem de forma pura, apresentando-se em diferentes níveis de combinação na história das sociedades ocidentais conforme o grau de democracia material existente, expressando-se nos sistemas pluralistas que fazem transigir culpabilidade e perigosidade. Por isso, se por um lado é certo sustentar que 9 hoje a maior parte dos sistemas jurídico-penais privilegia amplamente o Direito Penal do Fato, por outro é igualmente correto afirmar que o Direito Penal do Autor nunca será inteiramente abandonado, pois sempre resgatado – sobretudo em momentos de crise – diante da necessidade da etiologia individual na fundamentação da repressão. Uma ameaça constante ao Estado Democrático de Direito, que retorna veladamente sob a forma de novos projetos de controle social, como tão bem exemplifica o funcionalista Direito Penal do Inimigo (“Feindstrafrecht”) de Günther JAKOBS, a autorizar a relativização de todos os princípios de proteção individual quando se trate de neutralizar os mais recentes inimigos da ordem jurídica, indivíduos perigosos definidos pelo professor alemão como não-pessoas (“Unpersonen”), indignas de se beneficiarem das garantias democráticas inerentes aos processos de imputação de responsabilidade penal, legitimando uma nova Cruzada contra os marginalizados sociais. Como se vê, o Direito Penal do Inimigo também autoriza tratamento normativo desigual em prejuízo ao acusado conforme seu perfil de risco, reformulando em novos tons o mesmíssimo Direito Penal do Autor que justificou a merecida má fama de certos penalistas neokantianos no início do século XX. Nada mais, enfim, do que uma empolada e reacionária retórica jurídica para uma pós-moderna liberação da barbárie. Não há qualquer dificuldade, portanto, em perceber no avanço do Direito Penal do Autor no Brasil o eterno retorno da Política Criminal do Estado de Polícia que foi oficialmente encampada pela Ditadura Brasileira. Em síntese, a criminalização contra inimigos da ordem social não muda, o que muda são os inimigos escolhidos para representar essa “ameaça permanente” à ordem social e seus valores conservadores. Resta-nos apenas, portanto, identificar quem são esses inimigos nos dias atuais. 5. Os inimigos de hoje: prisões cautelares, tortura, desaparecimento e execuções 5.1. A prisão como instrumento para neutralização dos perigosos ou inúteis Existe forte entre nós a concepção de que há uma diferença clara entre presos comuns e presos políticos. Na verdade, mesmo entre os presos políticos durante a ditadura havia essa forte distinção, a ponto de alguns presos políticos na penitenciária 10 da Ilha Grande, no Rio de Janeiro, terem solicitado a construção de um muro que os separasse dos presos comuns, para deixar claro a diferença. Quero demonstrar que a distinção entre preso político e preso comum é equivocada. De início, porque todo preso é político, no sentido de ser atingido por uma forma de controle social estabelecida em um programa de política criminal específico. Ou seja, todo preso é preso de uma política criminal, social e culturalmente determinada. Daí porque o lema da rede 2 de outubro, que luta pelos direitos dos presos sistematicamente negados pelo Estado brasileiro, é “Todo preso é um preso político”. A bem da verdade, a Criminologia Crítica já demonstrou que não existem atos em si mesmos criminosos, isto é, de que todo crime é o resultado de um processo de criminalização, e não de uma definição ontológica que distingue naturalmente o permitido do proibido. Não só qualquer ação não tem, em si, antijuridicidade anterior à definição criminal como também, de modo explícito, inventa-se antijuridicidade em ações depois reconhecidas como socialmente irrelevantes. Assim, a título de mero exemplo, na Alemanha Ocidental e até a década de 60, as relações sexuais homossexuais foram criminalizadas sob o rótulo de “sodomia”. Pode-se claramente ver, aqui, o conteúdo político (machista, heterossexual e conservador) de uma criminalização que não tem qualquer lesividade, pois consensual e cingida à esfera privada. O mesmo podemos dizer – e espero que possamos dizê-lo em breve – em relação aos usuários, comerciantes e produtores de drogas consideradas ilícitas no Brasil. De fato, a criminalização da produção, comércio e uso de certas drogas – mas não de outras – deixa em claro a orientação política de um processo de criminalização que vitimiza quase que exclusivamente somente as pessoas pobres e, contra elas, legitima cruéis práticas punitivas, valendo-se de uma maquiavélica distinção “amigo-inimigo” que legitima a repressão penal apesar de qualquer garantia constitucional. Contra elas, como se verá adiante, o pior do arsenal punitivo brasileiro – prisões arbitrárias, torturas, execuções sumárias e desaparecimentos – está completamente legitimado e, eventualmente, aplaudido pelos setores mais conservadores e amedrontados da sociedade brasileira. Por fim, para que não resista em nós a ideia de que presos comuns e presos políticos são essencialmente diferentes, a ponto de afastar a aproximação crítica entre 11 a perseguição penal da ditadura contra dissidentes políticos e a perseguição penal do Estado brasileiro contemporâneo contra “traficantes” e outros “marginais”. Veja-se, por exemplo, que apesar da existência de 1684 crimes na legislação penal brasileira, apenas 5 entre eles servem para manter na prisão 82% da população masculina e 96% da população feminina. Esses crimes são, pela ordem, tráfico de drogas, furto, roubo, homicídio e posse ilegal de armas. E o perfil das pessoas presas por esses crimes é rigorosamente idêntico: pessoas pobres, negras ou pardas, desempregadas ou subempregadas, usuários de drogas e com baixa escolaridade (a rigor, ensino fundamental incompleto, ou seja, não chegaram ou passaram da 8ª série primária). A explícita seletividade do sistema de injustiça criminal, portanto, mostra sua vocação original ao prender apenas algumas pessoas e por alguns tipos de crimes, demonstrando que as pessoas não são presas pelo que fazem, mas pelo que são (e notadamente quando, o que são define o que fazem, tal como ocorria na criminalização da sodomia). E, à exceção do homicídio e algumas formas de roubo – que não alcançam 20% das penas aplicadas a esse contingente humano – estamos tratando de fatos que admitem solução não criminal, que passam pela regulamentação administrativa (caso de drogas e posse ilegal de armas), pelos mecanismos de recomposição e restauração de conflitos (no caso dos roubos e furtos) ou até mesmo simples descriminalização (no caso dos furtos de bagatela). 5.2. Prisões temporárias Uma das estratégias preferenciais para controle social utilizada por regimes ditatoriais é a prisão cautelar arbitrária, isto é, a detenção de alguém para simples “averiguação” de crimes, um período normalmente utilizado para torturar o suspeito até que ele revele alguma informação incriminatória (de si ou de outros) ou apenas para dissuadir o potencial “criminoso” de jamais se rebelar contra a ordem vigente. Assim, era corolário lógico da redemocratização brasileira que a prisão cautelar – isto é, a prisão antes da condenação transitada em julgado após o devido processo legal – fosse absolutamente excepcional. Essa concepção ganhou ainda mais força recentemente, 12 quando o Código de Processo Penal incluiu diversas alternativas cautelares para assegurar a instrução processual sem a pernóstica detenção do acusado, entre elas a extensa previsão de fiança. Em sentido oposto, na prática, o que se vê é nitidamente o contrário: a prisão preventiva não é exceção, mas regra nos processos criminais brasileiros, notadamente nos processos que se desencadeiam contra sua clientela preferencial. De fato, o Brasil mantém hoje quase metade de sua população prisional reclusa por conta de prisão preventiva, ou seja, das cerca de 520 mil pessoas que hoje vão dormir enjauladas no desumano sistema carcerário nacional, aproximadamente metade está presa “preventivamente”, sem ter sequer sido submetida a julgamento, isto é, são pessoas normativamente inocentes cumprindo pena como se fossem condenadas, algo que só seria compreensível na mais aguda vigência de um estado ditatorial. A tentativa, pelo Conselho Nacional de Justiça, de atenuar esse número, incluindo na conta o número de pessoas cumprindo pena em regime domiciliar para diminuir a proporção de quase metade de prisões preventivas, elevou o Brasil à categoria de terceira maior população prisional do planeta, com aproximadamente 722 mil condenados. Não deixa de ser também preocupante notar que boa parte desse contingente humano está presa sob a rubrica de “prisão temporária”, uma forma arbitrária de prisão para averiguação que é absolutamente incompatível com a presunção de inocência, garantia constitucional de todo o cidadão brasileiro desde 1988, e que ainda resiste à declaração de sua inequívoca revogação por conta da conveniência de seu uso para o poder público. 5.3. Tortura: ontem, hoje e sempre De acordo com a classe policial, tanto civil quanto militar, a tortura ainda é o meio preferencial de investigação no Brasil. As investigações criminológicas mostram diversas formas de tortura, seja como aplicação informal de penas, seja como forma de extrair informações que possam orientar as investigações posteriores. 13 As principais formas de tortura utilizadas pela polícia brasileira incluem a aplicação de socos e pontapés e o uso de bastões revestidos com PVC para golpear sem deixar marcas visíveis ou permanentes. Além disso, nas favelas e demais bairros de moradia da classe pobre, usam-se também técnicas de asfixia (por estrangulamento ou sacos plásticos), eletrochoque, extração de unhas e dentes e disparos não letais de arma de fogo. Entretanto, a forma clássica de tortura é a ameaça ou manutenção dos detidos em celas imundas e superlotadas, onde é impossível viver com alguma dignidade, pela privação do sono, de intimidade, de higiene e alimentação. Essas masmorras contemporâneas, lotadas nas Delegacias de Polícia, servem principalmente para constranger os suspeitos que não dispõe de assessoria jurídica ou meios corruptos para liberação, e que são obrigados a confessar ou alcaguetar outras pessoas para se livrarem dessa existência indigna. Para piorar, a prevenção à tortura é irrisória no Brasil, já que as prisões cautelares são francamente endossadas pelas autoridades judiciais e frequentemente requeridas pelo Ministério Público. Mais do que isso, quando esses episódios são denunciados tornam-se objeto de ironia por parte de boa parte dos magistrados (“o acusado sempre diz que foi torturado”), desqualificando-se a versão do acusado para convalidar despudoramente as declarações registradas de modo unilateral nas delegacias de polícia ou, pior, informalmente registradas pelos policiais militares, aos quais em oposição à presunção de inocência é atribuída “boa-fé”. E não há, exceto cinco casos, reparação moral por pessoas mantidas nessas condições, por qualquer período de tempo, e de modo absolutamente desigual à justa indenização assegurada aos que sofreram sofrimento semelhante durante a Ditadura brasileira. Nada pode soar tão irreal quanto a esperança então aclamada no pós-ditadura, expressa na promessa “Tortura, nunca mais”. 5.4. A forma jurídica das execuções sumárias e os “desaparecimentos”: cadê o Amarildo? A pesquisa do Professor Doutor e Delegado da Polícia Civil do Rio de Janeiro Orlando Zaccone é mais um trabalho acadêmico a demonstrar que está em curso um 14 genocídio contra os brasileiros pobres. Processo que, a propósito, conta com a colaboração – e, eventualmente, os aplausos – de promotores e juízes, que por medo, ingenuidade ou cinismo, aderiram integralmente à ideologia da defesa social para se reenquadrarem no arquipélago burocrático como “agentes de segurança pública” e não garantes dos direitos fundamentais de suspeitos e acusados. Para se ter uma ideia, somente no ano e 2009 e somente em dois estados do país, Rio de Janeiro e São Paulo, a polícia assumiu a autoria da morte de 963 pessoas – fora as pessoas que foram mortas e “desaparecidas” sem qualquer registro. Esse número é impressionante porque já é maior ao número total de vítimas da última guerra em território sul-americano, a guerra das Malvinas, com pouco mais de 650 vítimas fatais. Todas essas mortes produzidas pela polícia foram arquivadas pelo Ministério Público, que considerou todos esses casos como situações de “legítima defesa”, embora em sua absoluta maioria os relatos não admitissem, sequer, a presunção da existência de agressão injusta, atual ou iminente, a direito próprio ou alheio, como exige a lei. Pelo contrário, existiam casos em que a hipótese de “legítima defesa” era manifestamente contraditória, com um caso de tiro na nuca do “agressor”, contra acusados de lançar granadas sem explosão e com pinos não retirados e com casos de até oito tiros nas costas. A banalidade da morte, aliás, está mesmo além dos Autos de Resistência utilizados para justificar o genocídio das pessoas marginalizadas do mercado de trabalho e da vida social do “asfalto” brasileiro. Cerca de três meses atrás, o semanário Fantástico da Rede Globo de Televisão – parceira generosa da Ditadura Brasileira, a propósito – mostrou dois policiais exterminarem um menino de 14 anos acusado genericamente de colaboração com o “tráfico de drogas” em um lugar supostamente “pacificado”. A câmera que registrou o fato mostrou não só a banalidade da morte nas áreas onde a lei é a razão do momento, mas a absoluta despreocupação dos policiais que, sem qualquer vergonha, declaram a indignidade de vida daqueles que estão sob seu arbítrio. Por fim, para ilustrar a dura realidade de uma ditadura permanente no exercício da competência punitiva estatal, basta citar o caso do auxiliar de pedreiro Amarildo, desaparecido por policiais de Unidade Pacificadora, que invadiram sua casa sem 15 mandado, conduziram-no à força ao porta-malas de uma viatura policial, para então “desaparecê-lo”. E não fosse isso o suficiente, para tentar justificar esse homicídio escancarado, a Polícia tentou montar à revelia do Delegado Titular para o caso um inquérito que o definia como “traficante” da região. Para que fique claro, Amarildo não era um “traficante”; mas o esforço em assim defini-lo mostra que, se ele pudesse ser definido como “traficante” – portanto, “marginal”, “bandido” e “inimigo” da ordem social – sua morte estaria tão “pacificada”, quanto o morro onde ele morava. 5.5. A repressão aos movimentos sociais Durante e após as confusas manifestações de junho de 2013 a sociedade brasileira pode voltar a tomar consciência da arbitrariedade que cedeu à polícia para repressão da pobreza. Afinal, pode sentir na carne (pelos tiros de borracha), nos olhos (com o spray de pimenta) e nos sentidos (com as bombas de “efeito moral”) o quanto a Polícia permanece afim à sua tradição autoritária. Não por outro motivo, o debate que exige a urgente desmilitarização da polícia hoje ocupa a pauta preferencial na agenda de partidos políticos de esquerda. O pior da herança ditatorial, contudo, manteve-se reservado para os que persistiram na luta após a grande catarse de insatisfações sociais de junho de 2013. Constrangida pela manifestação de massas, os permanentes arautos e algozes da repressão – que vão da classe política até a dobradinha midiática Globo/Veja – voltaram a mostrar sua verdadeira orientação fascistóide assim que a poeira baixou. Pois na primeira metade do ano o país acompanhou a criminalização autoritária de advogados, estudantes, membros de partidos políticos minoritários e líderes de movimentos sociais que permaneceram comprometidos com a efetivação dos direitos fundamentais e a melhoria objetiva das condições de vida da população marginalizada. Tratava-se, na verdade, da reação tardia e covarde daqueles que foram constrangidos pela denúncia pública de seu comportamento, desmando e truculência, especialmente durante as demonstrações em massa que atingiram seu apogeu. Passado um ano, os acanhados de ontem aproveitam a apatia de hoje para coagir os que ousaram insistir. Embora tentem esconder sua pretensão punitiva pela retórica – tão vazia quanto oportunista – da “proteção à ordem social e ao patrimônio público”, os 16 objetivos reais por trás dessa nova onda de violência institucional saltam aos olhos: por um lado, a intimidação daqueles que se recusam a resumir a luta pela moralização da classe política a manifestações episódicas; por outro, a neutralização das alternativas partidárias e dos movimentos sociais não comprometidos com o status quo, arrefecendo o potencial emancipatório que trazem consigo às vésperas da eleição. Para a realização desta caricata e cruel vendeta, as mais elementares normas jurídicas foram solenemente ignoradas pelos agentes da repressão, que despudoradamente mobilizam seu vasto arsenal para responder, com gás, balas (reais ou de borracha) e cassetetes, de um lado, e apreensões, interceptações e prisões, de outro, ao exercício dos direitos de resistência, associação e mobilização por convicção política, constitucionalmente assegurados a todos. Ironicamente, essa sistemática e brutal negação do direito alheio pretende se legitimar na defesa do patrimônio público, com a conveniente amnésia de que este é cotidianamente muito mais vilipendiado pelos salários, benefícios e esquemas dos repressores do que pelas pedras dos manifestantes. Os alvos prioritários são, por certo, os politicamente informados, que resistem coletivamente e de forma organizada às tendências autoritárias e antidemocráticas. Graças à fundamental e desavergonhada colaboração da grande mídia e seus fieis seguidores – entre cínicos e ingênuos editores, colunistas e jornalistas – instaura-se uma oposição entre os que permanecem na luta e a massa de neófitos políticos que, não muito tempo atrás, acompanhavam os atualmente perseguidos pelas principais avenidas do país. Como se vê, o autoritarismo do tempo presente também é visível na repressão contra os movimentos sociais organizados. Com o arrefecimento das massas que saíram às ruas para protestar, os que persistem são ressignificados pela grande mídia como “vândalos” e “black blocks”, com ampla participação da Polícia Federal para prisão de atos preparatórios (ao extremo da prisão preventiva de um professor e um grupo de estudantes que organizavam um “ato teatral contra a Copa”). A fórmula utilizada é bastante conhecida. Explora-se mais uma vez a dicotomia “amigo-inimigo” para diferenciar a “boa” da “má” ação política, forjando-se o antagonismo entre “manifestantes” e “vândalos”. O caminho mais fácil para tanto é desqualificar os segundos como “criminosos”, utilizando-se do Direito e Processo Penal para reprimir a desobediência civil, em franca inversão da principiologia iluminista, isto 17 é, negando o fato de que o Direito existe para proteger o cidadão contra o Estado, jamais o contrário. Como se vê, acreditar que a repressão violenta da dissidência política é um fenômeno cingido à Ditadura é um grosseiro equívoco. Que essa realidade possa se repetir no cotidiano brasileiro é um alerta para todos os democratas comprometidos com a “eterna repetição” dos erros do passado, se não antes, agora conscientes de que a luta está muito longe de terminar. 5.6. Restrições ao Habeas Corpus e ressurreição da Justiça militar: permanências do AI-5 A funesta disciplina dos Atos Institucionais explicitou o que havia de mais arbitrário na Ditadura de 64. São célebres disposições desses atos de poder antidemocrático a restrição do Habeas Corpus e a definição da competência da justiça militar para julgar civis por crimes praticados contra os militares ou a ordem pública. Novamente, aqui, é o caso de perguntar: será que após a promulgação da Constituição da República de 1988 essas restrições ficaram no passado? A resposta, infelizmente, é negativa. Em relação ao Habeas Corpus, vimos nos últimos cinco anos uma forte tendência que partiu das Cortes Superiores – tanto do STJ (“casa da cidadania”) quanto do STF (“guardião da Constituição”) – de restringir seu alcance e validade. O motivo alegado era tão simples quanto irrelevante do ponto de vista estritamente jurídico: alega-se que existem “Habeas Corpus” demais nas instâncias superiores, a provar que o instrumento de proteção individual estaria sendo “vulgarizado” pelos advogados brasileiros além das hipóteses de atual ou iminente violação direta da liberdade ambulatorial por ato ilegal de autoridade pública. Duas observações sobre esse assunto, antes de mais nada. Primeiro, a doutrina de ampla admissibilidade do Habeas Corpus é uma conquista popular pós-ditatorial que jamais poderia ser restringida sob pena de retrocesso democrático; que exista um instrumento informal, que dispense maiores formalidades (procuração, forma legal etc.) para acessar às Cortes em busca de justiça é fato que deve ser enaltecido, jamais atacado por sua “inconveniência”. Segunda observação: dois estudos recentes 18 mostraram que essa alegação é mentirosa, e que o número de Habeas Corpus não é o que congestiona a pauta dos Tribunais Superiores; é importante que o público saiba que o que mais trava a pauta das Cortes Superiores são recursos interpostos por bancos privados e órgãos da União. Trocando em miúdos, o que torna “lento” o Judiciário são as centenas de milhares de recursos apresentados por Itaú, Bradesco, Banco do Brasil etc. contra seus correntistas e pela Previdência Social contra os que pedem benefício social. Mas, do ponto de vista político, a questão não é essa; é, simplesmente, de que o grande número de Habeas Corpus deveria antes de tudo demonstrar a arbitrariedade das decisões judiciais em primeira e segunda instância, típica de juízes que acreditam ser parte do programa de segurança pública, e não garantes da lei em favor do cidadão e contra as pretensões punitivas do Estado. Para piorar, o atual ministro do Supremo Tribunal Federal, Luis Roberto Barroso, decidiu reinstaurar a competência da justiça militar para julgar crimes praticados por civis contra militares. Em uma decisão errada tanto do ponto de vista hermenêutico quanto histórico, uma senhora que “desacatou” um policial lotado em “Unidade Pacificadora” do complexo de favelas do Alemão não será julgada pelo juiz natural, mas no tribunal militar e por uma junta de quatro juízes, dos quatro três são militares. A repetição de discursos e práticas é, mesmo, impressionante. 6. Conclusão: o autoritarismo do tempo presente Não é difícil concluir que a Ditadura brasileira, no que se refere a suas práticas punitivas, ainda não acabou. Pelo contrário, está longe de acabar. Melhor seria dizer que ela apenas se ressignificou, para agora privilegiar alvos menos simpáticos, demonizando a figura dos “marginais” e “traficantes” que abastecem o medo social e autorizam a franca exceção a todas as garantias constitucionais elaboradas para evitar a repetição dos horrores da Ditadura. Somente uma atitude cínica, “moralista-meritocrática” poderia tentar evitar a óbvia constatação de que foi uma posição de classe o elemento determinante da censura que se seguiu à cruel criminalização da resistência contra a Ditadura. Não quero ocultar o fato de que existem óbvias diferenças nas situações de ontem e hoje, mas 19 quero sim salientar suas semelhanças para reforçar a urgência do esforço para ampla redução da competência punitiva do Estado brasileiro e seus agentes. E, contra minha exposição, pode-se alegar que a realidade que volto a denunciar é bastante conhecida, e que o tempo dos diagnósticos de tempo presente acabou para dar lugar aos prognósticos de um futuro mais democrático. Todavia, estou na companhia de San Tiago Dantas para lembrar, aqui, que há coisas que precisem ser ditas, até que sejam ouvidas. E a mensagem, aqui, a ser repetida, é bastante clara: o Brasil saiu da Ditadura, mas a Ditadura não saiu do Brasil.