A difícil adaptação da polícia paulista

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Battibugli, Thaís (2009) A difícil adaptação da polícia paulista ao estado de direito (pós-1946 e pós-1985), in: Dilemas 39-63. Die Schülerin von Sérgio Adorno fasst ihre politikwissenschaftliche Dissertation zusammen. Auf der Grundlage der anglo-amerikanischen Polizeiliteratur (Reiner u.a.) beschreibt sie die "Polizeikultur" als entscheidend für die Widerständigkeit gegen den Rechtsstaat.

O estudo da cultura policial permite determinar até que ponto e por que ações ilegais são consideradas normais e mesmo necessárias para o padrão da conduta policial de determinada época. Para tanto, é necessário analisar casos de desrespeito pelos direitos dos cidadãos, como a prisão sem o devido processo legal, tortura e casos de corrupção policial, pois nem sempre o comportamento aceito pela prática policial cotidiana é aprovado pela sociedade. Dessa forma, a ação do policial não pode ser compreendida sem o estudo da configuração, da inserção do indivíduo em um grupo pertencente a um modelo burocrático com cultura característica (ELIAS, 2000, p. 57).
O segundo nível da cultura policial se forma a partir da interação entre o conhecimento técnico, as regras formais e a prática cotidiana. É o seu segredo profissional, é a diferença específica em relação às demais organizações burocráticas (WEBER, 1966, p. 26).
Em 1955, o deputado estadual Bento Dias Gonzaga, em discurso na Assembléia Legislativa, afirmou que a população de São Paulo não possuía segurança, não devido aos delinquentes, mas às arbitrariedades da própria polícia. No pós-1985, os relatos de arbitrariedades não foram menores, pois tanto a PM como a Polícia Civil têm sido marcadas por reiterados casos de violência policial (como a tortura e a execução sumária), corrupção e impunidade. Além disso, nota-se que a corrupção e a violência nas organizações policiais e no sistema penitenciário contribuem para o fortalecimento de organizações criminosas como o PCC (Primeiro Comando da Capital) (ADORNO e IZUMINO, 1999, pp. 114-116; MESQUITA NETO, 2002, pp. 231-234; PINHEIRO, 1999, pp. 84-94; MESQUITA NETO e ALVES, 2007, pp. 91-107).
Note-se que, no pós-1946 e no pós-1985, vários projetos de reforma da polícia foram propostos, mas a maioria não se concretizou, como a unificação entre as polícias Civil e Militar, a equivalência de atribuições, hierarquia e salários entre policiais civis e militares e a equiparação de salários entre delegados, juízes e promotores7 (BATTIBUGLI, 2007, pp. 162-188; SILVA, 2008, pp. 193-209).
O sistema democrático consolidado conta com cinco bases de sustentação: a sociedade civil livre e ativa, com grupos auto-organizados; a sociedade política, relativamente autônoma para exercer o controle sobre o poder público e o aparato estatal; o estado de direito, para assegurar liberdades e garantias individuais; a burocracia estatal, que opera segundo os padrões legais; e a sociedade econômica institucionalizada, com relações mercado-indivíduo reguladas pelo Estado (LINZ e STEPAN, 1999, pp. 25-34).
A condição básica para a criação da democracia política moderna foi a constituição do Estado como instituição detentora de soberania jurídico-política e do monopólio do uso da violência física legítima, em oposição ao caráter descentralizado do poder medieval (WEBER, 2000, p. 34). Assim, somente o Estado, soberano em seu território, tem a prerrogativa de utilizar a força de modo legítimo. O caráter de legalidade de suas ações é conferido pelo controle e pelas limitações impostas pela própria legislação estatal. O Estado tem por fi m último o bem comum e a manutenção da ordem pública, da paz social (ADORNO, 2002, pp. 276 e pp. 299; REINER, 2004, p. 167).
Por um lado, a possibilidade de ocorrência de condutas ofensivas e injustas a alguém é inerente à profissão, pois a conjugação entre o agir rápido e o uso de coerção física pode facilmente levar a arbitrariedades involuntárias (BITTNER, 1990, pp. 96-97). Por outro lado, a decisão sobre a conduta mais apropriada para cada caso é tomada por estereótipos sobre a situação ou pessoa suspeita, “perigosa”. A atividade policial depende mais de quem é a pessoa do que de sua conduta em si. As arbitrariedades ocorrem, frequentemente, em alvos preferenciais: desprivilegiados sociais, jovens e negros, vistos como mais inclinados a cometer infrações, ou como menos propensos a denunciar possíveis desvios que resultem em punição ao policial infrator. Um jovem negro pobre e um senhor rico branco, ao praticarem os mesmos atos, certamente receberiam tratamentos distintos, diferenciação que reflete os preconceitos e a distribuição de privilégios de uma determinada sociedade, o que contribui para a proteção e manutenção das estruturas de poder. A atividade policial tem em si um cunho discriminatório que não pode ser ignorado, cujo problema não está na existência de conduta movida pela suspeição, mas no conteúdo de tais percepções preconceituosas, compartilhadas pela cultura policial e por vários setores da sociedade (REINER, 2004, pp. 139-140; BITTNER, 1990, pp. 96-99 e p.129).
A organização policial paulista tem um controle interno rígido e centralizado, porém ineficaz, pois regula com rigor apenas questões ligadas à hierarquia, às decisões administrativas da corporação e à vestimenta do policial, principalmente em instituições de doutrina militar como a Polícia Militar. Assim, a atuação do policial nas ruas nunca está sob inteiro comando dos superiores hierárquicos, ou devido à própria natureza do trabalho de policiamento, que é a de tomar decisões rápidas e complexas em situações imprevisíveis, ou por falta de interesse dos próprios superiores em um controle mais efetivo, ou, ainda, como consequência do protecionismo existente entre policiais de mesma graduação, que costumam não divulgar desvios de seus pares. Se um colega está em perigo, não importa se está certo ou errado, merece ajuda e apoio; o espírito corporativo encobre as violações cometidas por policiais, por seus superiores hierárquicos e por agentes do mundo externo, a sociedade e a esfera política (REINER, 2004, pp. 140-141; BAYLEY, 1994, pp. 64-65; BITTNER, 1990, p. 147).
O cotidiano de abusos policiais pode ser melhor compreendido pelo fato de os policiais em contato com a população pertencerem ao mais baixo escalão, com menos preparo técnico, menos escolaridade e menor salário da corporação, mas terem grande margem de arbítrio. Aqueles que deveriam controlar o desempenho desses policiais, ou seja, os oficiais mais graduados em hierarquia e escolaridade, na verdade, não têm condições de avaliar a sua conduta cotidiana, geralmente por não realizarem atividades de policiamento. Deixam-se em segundo plano, justamente, a relação com o cidadão e as possíveis arbitrariedades do policial,por não se ter ou não se querer ter controle sobre suas decisões e ações diárias, além de se dar prioridade às formalidades da disciplina interna (BAYLEY, 1994, p. 65; BITTNER, 1990, p. 142).
Como muitos brasileiros são tratados como subcidadãos, o indivíduo pobre não tem seus direitos civis assegurados, nem acesso à Justiça formal, e sua situação de permanente precariedade é vista como natural pela parcela mais abastada da sociedade. O subcidadão é, assim, propriedade da polícia e alvo preferencial de arbitrariedades (PINHEIRO e SOUZA, 2000, pp. 56-57, 267; KOWARICK, 2002, p. 10).